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“Cotidiano Inventado”

maio 15, 2013
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“COTIDIANO INVENTADO”
O arquivo fotográfico de Angella Conte é formado por imagens com vocação para se misturarem. Não no sentido de se confundirem na memória, mas no de se mesclarem mesmo; de possuírem pontos em comum fortes a ponto de as tirar da ordem cronológica, geográfica, de embaralhar o registro artístico e o turístico, o flagrado e o construído, o sonho e o pesadelo.
O que une um conjunto delas é tão singular quanto o que o separa, para reiniciar e frear de novo o jogo de combinações que não cessa de ser reinventado. Um agrupamento de fotos de becos, tirados mundo afora e com diferentes propósitos, já se formalizara como ampliação fotográfica única, que colava um beco no outro gerando uma estrutura urbana claustrofóbica e algo surrealista. (Importante notar, entretanto, que a “colagem digital” era propositalmente seca, para deixar aparente a operação.)
Pois este agrupamento – que poderia ter parecido finalizado aos mais incautos (isto é, finalizado em sua própria potência de seguir agregando becos do mundo infinitamente) – comparece agora como um dos elementos de base para uma nova colagem digital. No novo arranjo, a coleção de becos faz as vezes de céu para uma sobreposição insólita de paisagens. Em todas as colagens da série Cotidiano Inventado, testemunhamos uma convivência entre lugares diferentes e temporalidades distintas.
A luminosidade do pôr-do-sol parece incompatível com a luz suave que banha os jovens reunidos em um piquenique em outra paisagem, assim como o céu cinzento e poluído que cobre a metrópole não condiz com a temperatura forte que cobre a multidão que se acotovela – de costas para nós – para observar atentamente um fato que também não nos é dado a ver.
Por vezes, o contraste é contextual, como no espelho convexo pendurado em uma árvore que revela uma paisagem urbana no que seria o contra-plano da fotografia em que o espelho foi inserido. Ou como no campo com rolos de feno que surge enclausurado em um edifício de alguns séculos atrás. Natureza e cultura em estranhas conversações.
Em várias das imagens se repete uma figura feminina, que protagoniza ações enigmáticas. Ela cochila no que aparenta ser uma sala de estar montada a céu aberto. Ela caminha, vestida de dourado, carregando um volume desproporcional de balões brancos por paisagens desabitadas. Ela se posta vendada, e tendo as mãos presas às costas, no meio de uma estrada. Trata-se da própria artista, retratada originalmente durante performances que realizou entre 2007 e 2012 em espaços urbanos no Brasil e na Europa (Portugal e Irlanda). Misturados a outros tempos e contextos, estes retratos perdem a conotação inicial (de abordar o contraste entre público e privado ou de alertar para o anestesiamento em relação à natureza ou às rotas pessoais em uma cidade, por exemplo) para transmitirem novos sentidos ou para relevarem significados antes ocultos.
O mesmo se passa em todas as recombinações de imagens, que nada mais são do que obras anteriores da artista misturadas. Estamos, portanto, diante de um longo repertório ou até de um arquivo transformado, à maneira da “retrospectiva” de Maurizio Cattelan no museu Guggenheim de Nova York no ano passado – quando pendurou todas as obras que já produziu (as próprias ou reproduções em tamanho reduzido), criando uma obra inteiramente nova (ou um novo e audacioso formato de exposição retrospectiva).
O que está em jogo aqui? Primeiro, uma sabedoria que Conte e Cattelan compartilham: a consciência de que em arte contemporânea, como na natureza, nada se cria, tudo se transforma. Depois – e aqui cessam as semelhanças entre os dois artistas –, uma filosofia propriamente ecológica.
A lógica da colagem, que permeia todos os trabalhos de Angella Conte, faz com que haja uma continuidade “natural” entre os diferentes temas e materiais com que a artista opera. Porque tudo – fotografia, vídeo, texto, escultura, objetos encontrados, objetos mundanos e objetos nobres, a tradição da arte e o palco da natureza – é potencialmente combinável, recombinável e reaproveitável. Então ela dedica ao universo de obras que já realizou a mesma orientação que imprime ao conjunto de matérias-primas e discursos que elege.
Tudo adensa o curso de sua ecologia cultural. E nada poderia ser mais contemporâneo. Como nos ensina a semioticista Lucia Santaella, vivemos o marco histórico do 4o paradigma da imagem. O 1o paradigma era pré-fotográfico – o das imagens artesanais –; o 2o paradigma foi o propriamente fotográfico, ou seja, o das imagens técnicas que guardavam do real o rastro do visível que a câmera captura. Seguiu-se o 3o paradigma, pós-fotográfico, das imagens digitais. Hoje, o que impera – o 4o paradigma – é a imagem híbrida.
As obras da série Cotidiano Inventado misturam registros espaço-temporais, mesclam discursos artísticos e hibridizam as experiências artesanais (pré-fotográficas), fotográficas e manipuladas/construídas (pós-fotográficas) de Angella Conte, apresentando-nos uma realidade movediça e poética que pode ser entendida como a do cinema e da literatura fantásticos, do videogame ou do universo virtual.
Mas que, mais precisamente, espelha a sensibilidade/experiência contemporânea de conjugar todos estes mundos paralelos num só, a que rotineiramente damos o nome de vida.
Juliana Monachesi

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